A Medida Provisória nº 899/2019, a chamada MP do Contribuinte Legal, que disciplina a transação tributária, pode sofrer alteração no sentido de que os processos tributários de pequeno valor podem não mais chegar ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

A previsão é de que processos que discutem dívidas de até 60 salários mínimos, o que corresponde a R$ 62,7 mil, não poderão mais recorrer ao CARF em caso de jurisprudência consolidada.

Em contrapartida à referida restrição, o contribuinte poderá negociar diretamente nas Delegacias Regionais de Julgamento (DRJs) possíveis descontos de até metade do valor das dívidas. 

Sabemos que o volume de processos que tramitam no CARF é muito grande e que o órgão não consegue julgar em tempo razoável, mas, no meu entender, a alteração impede que o contribuinte tenha acesso a um órgão paritário, o que não ocorre nos julgamentos das Delegacias Regionais de Julgamento.

Analisando o relatório de Gestão do Exercício do CARF do ano de 2015, verifica-se que, naquele ano, haviam 118.747 processos a serem julgados no CARF, e que esses processos levam, em média, de 5 a 10 anos para serem julgados.

Segundo informações divulgadas pelo CARF, os litígios de até 60 salários mínimos representam 60% do volume de processos no CARF e 87% do montante inscrito na dívida ativa da União. No total, são cerca de 16 milhões de procedimentos de cobrança, que somam R$ 2,4 trilhões. Desses, cerca de 13 milhões referem-se às autuações inferiores a R$ 60 mil, que alcançam R$ 169 bilhões.

Se a mudança for aprovada, as delegacias regionais serão a última instância de julgamento para as dívidas de pequeno valor dos contribuintes e terão que aplicar a jurisprudência do CARF. Se o contribuinte não concordar com a decisão proferida, terá que recorrer ao Judiciário, onde terá que depositar em juízo o valor discutido como garantia da dívida.

Não há dúvidas de que o procedimento de julgamento do CARF deve ser revisto e que a mudança vai desafogar o órgão, o que espera que ele se torne mais ágil e eficiente. O problema que eu vejo é que a DRJ não tem composição paritária e, mesmo tendo que seguir a jurisprudência do CARF, entendo que não iguala tal situação.

Entendo que é muito importante adotar medidas que possam resolver os conflitos de forma mais célere, no entanto, a restrição ao recurso administrativo ao único órgão paritário do sistema administrativo tributário, a meu ver, é cerceamento de defesa, pois não é justo que o contribuinte não possa recorrer pelo simples fato de que o valor é pequeno.

Como dito, o processo administrativo fiscal é uma garantia constitucional e presta-se à proteção do patrimônio público (tributos), mas precipuamente à efetividade do direito de proteção dos contribuintes (art. 5º, LIV e LV, da CF), para permitir ampla defesa ante qualquer acusação de descumprimento das leis tributárias, mediante provas e recursos, para controle da legalidade, bem como o exame da culpabilidade e da adequada motivação do que seja objeto do ato de lançamento tributário.

A garantia constitucional ao devido processo administrativo fiscal, no Brasil, é um direito fundamental que deve conviver ao lado do princípio do livre acesso ao Judiciário, e a restrição ao recurso administrativo para uma parcela dos contribuintes viola essa garantia. Ambas as jurisdições, administrativa e judicial, estão abertas aos contribuintes, porque a Constituição determina, no art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Destarte, são indisponíveis ao legislador tanto o afastamento do processo administrativo fiscal quanto qualquer cerceamento ao livre acesso ao Judiciário (princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional).

Da forma em que se pretende a alteração, o pequeno terá que recorrer ao Judiciário e garantir o juízo, e o grande continuará podendo discutir a dívida no CARF, sem ter que pagar por isso!