O Supremo Tribunal Federal, em plenário virtual, a unanimidade, julgou
inconstitucional os dispositivos da Lei Kandir – LC 87/96 que previam a incidência de ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo
contribuinte.

O dispositivo do julgamento foi publicado no dia 19/04/2021 e, em se
tratando de julgamento proferido em Ação Direta de Constitucionalidade, este tem efeitos vinculantes em relação a todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública e consequentemente sobre toda a sociedade. O acórdão ainda não foi publicado, porém conforme jurisprudência consolidada da Suprema Corte, os efeitos da decisão se iniciam com a publicação da ata de julgamento, o que ocorreu, como dito, no dia 19/04/2021.

Desta forma, declarados inconstitucionais os dispositivos da Lei Kandir que
dão suporte à cobrança do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, por arrasto, todas as normas estaduais e distritais com esta previsão são inconstitucionais. Assim, desde o dia 20/04/2021 não é mais possível a cobrança de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, seja nas transferências dentro do Estado, seja nas transferências para filiais localizadas em unidades distintas da federação.

Pois bem, e qual é o impacto desta decisão no mercado?

A primeira questão que devemos avaliar, é como os Estados irão tratar o
tema. Inicialmente, considerando que a operação não é fato gerador do ICMS, temos que a nota fiscal de transferência não poderá conter o destaque do tributo. A nota deverá ser emitida zerada, sem base de cálculo ou alíquota. Assim, não gerará mais débito no Estado de origem, nem tampouco crédito no Estado de destino.

Partindo desta premissa, temos que o Estado de destino poderá glosar o
aproveitamento destes créditos caso haja a indevida emissão da nota fiscal com o destaque de ICMS na transferência, pois tal documento será inidôneo, uma vez que a operação não é fato gerador do tributo. Ainda que a legislação do Estado mantenha a obrigação do destaque do ICMS na operação, essa exigência é inconstitucional e portanto o Estado de destino não terá a obrigação de aceitar este crédito.

Aliás a inexistência do direito ao crédito nas operações que não são objetos
de tributação está expressamente prevista no § 1º do artigo 20 da Lei Kandir, cita:

§ 1º Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de
serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do
estabelecimento.

Importante ressaltar que, em questão similar, o Supremo Tribunal Federal
ao julgar o Recurso Extraordinário 628.075, apreciando o tema 490 da repercussão geral, em acórdão publicado no dia 02/10/2020 fixou o entendimento de que é sim constitucional a glosa de créditos, o acórdão restou assim ementado:

TRIBUTARIO. ICMS. PRINCIPIO DA NAO CUMULATIVIDADE. CONCESSAO DE
CREDITO FICTÍCIO PELO ESTADO DE ORIGEM, SEM AUTORIZAÇÃO DO CONFAZ. ESTORNO PROPORCIONAL PELO ESTADO DE DESTINO.
CONSTITUCIONALIDADE.

O estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito Fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem
autorização do Conselho Nacional de Polıt́ica Fazendária (CONFAZ), não viola o princípio constitucional de não cumulatividade. (Tema 490 da repercussão geral).

Desta forma, podemos concluir que todos os incentivos iscais de ICMS
concedidos para a realização de operações interestaduais, não são mais aplicáveis nas operações de transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, pois se a nota fiscal deve ser emitida sem destaque de ICMS, automaticamente, qualquer crédito outorgado para esta operação perdeu o sentido.

Outro ponto extremamente relevante é quanto ao tratamento do crédito
relativo à aquisição da mercadoria posteriormente transferida. A LC 87, em seus artigos 20 e 21, traz a seguinte disposição:

Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
(…)
§ 3º E vedado o crédito relativo a mercadoria entrada no estabelecimento ou a prestação de serviços a ele feita:
(…)
II – para comercialização ou prestação de serviço, quando a saída ou a
prestação subseqüente não forem tributadas
ou estiverem isentas do
imposto, exceto as destinadas ao exterior.

Art. 21. O sujeito passivo deverá efetuar o estorno do imposto de que se tiver creditado sempre que o serviço tomado ou a mercadoria entrada no
estabelecimento:

I – for objeto de saída ou prestação de serviço não tributada ou isenta,
sendo esta circunstância imprevisível na data da entrada da mercadoria ou da utilização do serviço;

Os dispositivos acima são repetidos na legislação de ICMS de todos os
Estados e do Distrito Federal. Portanto, há expressa previsão legal de que se a operação subsequente com a mercadoria for não tributada, não deve ser feito o aproveitamento do crédito relativo a sua aquisição, e caso já aproveitado, deve se proceder o seu estorno.

Pois bem, tal normativo se aplica ao caso? Deverão as empresas não
aproveitar ou estornar os créditos das mercadorias adquiridas e depois transferidas para suas filiais sem destaque de ICMS? Acredito que não.

A previsão normativa visa impedir o creditamento quando a operação
mercantil seguinte é não tributada ou isenta, ou seja, o que visa a norma é impedir que o contribuinte tenha o crédito da aquisição sem o débito da venda. No caso em tela, isso não ocorre, pois o contribuinte continuará tendo o débito da venda, porém em estabelecimento distinto.

A decisão da Suprema Corte tem por fundamento o fato de que a
transferência entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte é um mero deslocamento físico, não há mudança de propriedade da mercadoria, vejamos:

TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SAIDA FÍSICA DE BENS DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS. PRECEDENTES DA CORTE. AGRAVO IMPROVIDO.

I – A jurisprudência da Corte é no sentido de que o mero
deslocamento fÍSico de bens entre estabelecimentos, sem que haja transferência efetiva de titularidade, não caracteriza operação de circulação de mercadorias sujeita à incidência do ICMS.

II – Recurso protelatório. Aplicação de multa.

III – Agravo regimental improvido.” (AI 693.714 AgR, Rel. Ministro Ricardo
Lewandowski, Primeira Turma, DJe 21 ago. 2009).

No julgamento da ADC o entendimento foi reforçado, merecendo destaque o
seguinte trecho:

Há anos os julgamentos que discorrem sobre fato gerador do ICMS se dão no sentido de que a circulação fıś ica de uma mercadoria não gera incidência do imposto, visto que não há transmissão de posse ou propriedade de bens.
Posicionou-se assim em voto no RE 158.834-9/SP, Tribunal Pleno, o Ministro
Marco Aurélio, redator do acórdão, ainda em 2002 (DJe 05/09/2003):
“(…) jamais esta Corte potencializou o vocábulo “saída”, isto para definir o
enquadramento dos casos concretos, nos fatos geradores de que cuida o
Decreto-Lei n. 406/68. Sempre perquiriu a natureza, em si, do ato jurídico que a estaria a motivar, apegando-se à circunstância de o texto constitucional referir-se ao tributo como alusivo a operações relativas à circulação de mercadorias .

E certo que, nem sempre, faz-se indispensável a existência de
uma compra e venda mercantil, havendo atos jurídicos relevantes para efeitos da incidência do tributo. Nem por isso caminhou no sentido de assentar o deslocamento físico como suficiente, por si só, a atrair a incidência do tributo. A saída apenas física de um certo bem não é molde a motivar a cobrança do imposto de circulação de mercadorias. Requer-se, como consta do próprio texto constitucional, a existência de uma operação que faça circular algo possível de ser definido como mercadoria, pressupondo, portanto, como aliás ressaltado por Aliomar Baleeiro em “Direito Tributário Brasileiro, a transferência de domínio.”

Assim, entendemos que o mero deslocamento da mercadoria entre os
estabelecimentos do mesmo contribuinte não pode ser qualificada como uma operação não tributada, pois não há operação mercantil que é o fato gerador do tributo. O fato gerador ocorrerá na venda que será realizada no estabelecimento destinatário, que é do mesmo contribuinte.

Pensemos no exemplo abaixo:
a) Aquisição da mercadoria pela Unidade DF – crédito de 7%
b) Transferência da mercadoria da Unidade DF para Unidade GO (filial) – débito de ICMS – 0
c) Venda da mercadoria pela unidade GO – débito de 18%

Nesta hipótese teríamos que o ICMS a ser apurado pela Unidade GO terá
débito de 18% sem crédito algum, em contrapartida, na Unidade do DF haverá a manutenção do crédito da aquisição desta mercadoria para apuração do tributo local.

Ou seja, a operação de venda da mercadoria adquirida é tributada em 18% – portanto não há que se falar em estorno ou não aproveitamento de crédito pelo contribuinte. Ademais, a exigência de estorno de crédito nesta situação seria inadmissível, pois haveria uma penalização do contribuinte que não terá crédito no destino para se utilizar e ainda teria uma perda do crédito na origem.

O fato é que a decisão da ADC 49 torna impositivo e vinculante o
entendimento já consolidado do Poder Judiciário e demanda que todos os contribuintes de ICMS com operações em mais de um Estado refaçam os seus planejamentos tributários e se adaptem a esta nova realidade. Há uma nova lógica para a gestão do ICMS a ser implantada com urgência por todos, sob pena de se amargar enormes prejuízos no futuro.